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17/11/2008 COMUNICAÇÃO O retorno à África: cenas de nossa identidade ignorada
O retorno à África:
cenas de nossa identidade ignorada
Zilda de Oliveira Freitas
Professora de Literatura da UESB
Adeus à hora da largada
Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.
(Sagrada esperança, de A. Neto)
A produção literária em Língua Portuguesa dos últimos séculos foi complementada com a inserção em seu corpus da literatura oral de origem africana. Esta incorporação não revitalizou a literatura européia, uma vez que não era lusitana a temática e o fazer poético dos autores. O fato é que décadas depois, o equívoco só evidencia o contraste entre a ideologia portuguesa (ainda colonizadora!) e a pulsante necessidade de expressão da identidade ancestral.
Sem dúvida, não ajudou a definir a voz e a vez da produção africana no cenário cultural. Ao contrário, a inserção dos autores africanos entre europeus em profícuas antologias poéticas intensificou o mistério do que virá a ser a produção escrita do povo africano, tamanha a grandiosidade e a beleza das histórias recontadas ali. Escritas, porque oralmente estas histórias já perpassam gerações, sempre enriquecidas com novos detalhes que melhor delineiam o olhar sobre antigos mitos.
Gerados no espaço e no tempo anteriores à África colonial, os mitos persistiram por séculos no falar do povo, como exemplifica O fato completo de Lucas Matesso, de Luandino Vieira. Na cena final do conto, o chefe dos guardas pergunta pelo bilhete que imaginava ter sido trocado entre os presos e compreende mal o “fato completo”. Reproduzo aqui a cena de encerramento do conto:
“ É essa comida de feijão de azeite-palma com peixe de azeite-palma, a banana e tudo, que toda a gente nos musseques tem só a mania de chamar de “fato completo”. A gargalhada grande como as chuvas de abril engrossando mais os rios cantou na garganta dele, encheu a cela de alegria, fugiu no postigo, pelos arames da rede, entrou maluca nos gabinetes onde os irmãos agüentavam as pancadas e torturas, calou os pássaros no jardim e, com um salto, voou por cima dos muros da prisão, correndo livre pelas areias de todos os musseques da nossa terra de Luanda”. (VIEIRA: 1976, P.138)
Ironia cruel registrada por Luandino Vieira nos seus contos! Lucas jamais sairia vivo daquela prisão, mas sua gargalhada ao compreender o engano dos guardas foi libertadora, pois sabia o que era um fato completo, no falar dos musseques.
É preciso dizer que a identidade africana não se firma na presença do europeu, simplesmente. Ela já existia antes mesmo da chegada do europeu. No entanto, o penoso cruzamento destes caminhos culturais ajudou a definir o lugar da produção literária africana no mapa da cultura universal, isso é inegável.
O africano não é um “não-europeu”. Ser africano é reconhecer no confronto entre as duas culturas a sua identidade fortalecida.
Neste confronto, as nações ágrafas africanas aprenderam que oralmente a transmissão da cultura e dos mitos fica preservada, longe do entendimento do colonizador que não dominava a língua dos musseques, acreditando na imposição da sua, como língua padrão das colônias. Assim, as riquezas da literatura do povo africano foram ignoradas por séculos, pelos não-africanos, já que a língua local era quase uma senha entre os nativos da África.
Terminadas as guerras que libertaram os povos, surge na Europa um novo processo colonizador, que é a apropriação e utilização das histórias africanas em pesquisas universitárias de estudiosos que buscavam a “diversidade cultural”, o “multiculturalismo”, a “polivocidade” e tantos outros termos utilizados no fim do século XX.
Desta maneira, antes mesmo que os próprios africanos estabelecessem um “cânone”, lá estavam os europeus transformando autores africanos em celebridades instantâneas, em Best-sellers. A quem interessava este processo?
Os mi-soso (histórias em quimbundo que enfatizam o fantástico e o maravilhoso), os makas (histórias de fundo pedagógico), as malundas e mi-sendu (sigilosas epopéias dos guerreiros africanos), os ji-sabu (provérbios e ditos populares), as mi-embu e ji-nongongo (cantigas e advinhas), enfim, toda a produção do povo africano foi escrutada e começou a aparecer em muitas publicações, sempre com prefácios de grandes antropólogos e pesquisadores renomados, que destribalizavam a obra, tornando-as universais e compreensíveis aos leitores (e consumidores pagantes) europeus.
Quanto às nações africanas, lutavam para implantar a democracia em um cenário desolador de uma sociedade dividida por guerras internas e disputas pelo poder, no século XX. O africano superaria também este desafio e soube manter íntegra a sua cultura, sem desfigurá-la substancialmente. Passaram os escritores a entender na educação a saída e começaram a incentivar a alfabetização e o resgate da diversidade cultural dos povos silenciados.
O caldeamento ético e cultural, o diálogo existente no século XXI entre os muitos países de Língua portuguesa e a constante descoberta de novos autores africanos causam entusiasmo ainda hoje.
O continente negro se percebe transformado em um mar sem fim, que nos lembra as antigas canções que mencionam o êxodo, como as palavras repetidas nas praias da África: “ O corpo que é escravo, vai; o coração que é livre, fica...” ( Santilli: 1985, p. 25).
Por força, o corpo é extraído da terra e escravizado. Pela mesma força, a terra é invadida, conquistada e explorada ao máximo. Pela força de uma suposta supremacia intelectual, os mesmos colonizadores se apropriam das histórias populares africanas. Maior do que tudo isso, é a força do africano que resistiu à imposição européia e ainda hoje resiste. Resistamos!
Referências:
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: histórias e antologia. São Paulo: Ática, 1985.
VIEIRA, José Luandino. Vidas novas. Lisboa: Ed. 70/UEA, 1976.
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